Golpe do delivery em desfavor do consumidor, realizado na prestação de serviços de Fornecedor que disponibiliza plataforma digital para comercialização de produtos

Hipóteses de responsabilidade das plataformas digitais e da aplicação da excludente de ilicitude por culpa exclusiva da vítima

Com a evolução tecnológica, a facilidade de acesso à internet e agora potencializado com o “novo normal” causado pela pandemia, é cada vez mais comum a utilização de meios virtuais para soluções diversas, inclusive aquisição de produtos e serviços por meio digital, sem precisar sair de casa, de modo que muitos fornecedores passaram a comercializar de forma online, inclusive firmando parceria com empresas que disponibilizam plataformas digitais que centralizam diversos ramos do comércio, cujo objetivo é aproximar, intermediar e concretizar a comercialização de produtos e serviços.

Contudo, assim como a tecnologia avançou, os crimes de fraudes seguem se adaptando ao mundo digital.

Como são diversos os tipos de golpes que podem ser aplicados em ambientes virtuais e este artigo tem como finalidade a demonstração da aplicação do Código de Defesa do Consumidor em determinados casos, será abordado o recente golpe que ficou famoso durante a pandemia, qual seja, o “golpe do delivery” ou “golpe da falsa taxa extra na entrega” – lembrando que o princípio que será explanado aqui, pode ser aplicado em outras modalidades de golpes realizados em ambientes virtuais.

Para melhor ilustrar, é necessário apontar de forma resumida o mecanismo das empresas que disponibilizam plataformas digitais, cuja finalidade principal é a aproximação, intermediação e a concretização de comércio entre os fornecedores que anunciam seus produtos para venda aos consumidores, que, por sua vez, utilizam essas plataformas para aquisição dos produtos ali comercializados.

Realizada a parceria entre a empresa que disponibiliza sua plataforma digital e o estabelecimento comercial, o produto é colocado à disposição do consumidor que, ao realizar o devido cadastro na plataforma, pode escolher e adquirir produtos de seu interesse.

Para concretização das comercializações realizadas dentro dessas plataformas digitais, é primordial a participação de um terceiro profissional, o qual realizará a entrega do produto adquirido.

Deste modo, tem-se configurada a relação de consumo entre as partes, pois, a empresa que disponibiliza sua plataforma digital e os estabelecimentos comerciais que ali fornecem os seus produtos, se enquadram como Fornecedores, nos termos dos artigos 3º, do Código de Defesa do Consumidor, e as pessoas que adquirem os produtos na plataforma se enquadram como consumidores, nos termos do artigo 2º do CDC, ambos transcritos abaixo:

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

 Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

Em que pese o entregador ser profissional autônomo, sem que haja vínculo empregatício formal com a plataforma digital ou com os estabelecimentos comerciais, a empresa que disponibiliza sua plataforma digital e presta o serviço de aproximação, intermediação e concretização desse tipo de comércio é solidariamente responsável pelos prejuízos advindos de seus representantes autônomos, nos termos do artigo 34, do CDC.

Art. 34. O fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos.

Com isso, caracterizada a relação de consumo na situação apontada, bem como a responsabilidade solidária da prestadora de serviços que disponibiliza a plataforma digital para comercialização de produtos, na hipótese de prejuízos causados por seus parceiros autônomos, resta apontar que a responsabilização para reparação de eventuais danos se dá na modalidade objetiva, a qual não necessita a comprovação de culpa, conforme exposto no artigo 14, do CDC.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

Contudo, tratando-se de “golpe”, que consiste em um ato de má-fé que tem por objetivo ludibriar alguém, merecem atenção as hipóteses de excludente de responsabilidade estabelecidas pelo próprio Código de Defesa do Consumidor, no parágrafo terceiro do artigo 14, quais sejam:

 § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Ou seja, para que seja afastada a responsabilidade do fornecedor de serviços que disponibiliza a plataforma digital, este deve prestar um serviço sem defeitos, bem como provar que a culpa do evento danoso foi exclusiva da vítima ou de terceiro, lembrando que, no caso abordado, o entregador não é considerado como terceiro, mas sim parceiro autônomo.

Neste aspecto, considerando o aumento exponencial da prática de crimes cibernéticos de diversas modalidades, as empresas estão buscando cada vez mais por medidas de segurança e formas de evitar que seus consumidores sejam lesados, para demonstrar que aquele serviço prestado está livre de defeitos que possam expor seus consumidores a práticas de fraudes.

E, com isso, a empresa que disponibiliza sua plataforma digital, deve tomar todas as medidas cabíveis para que o consumidor não seja lesado, ainda que seu parceiro autônomo tente realizar alguma prática delituosa.

Contudo, não é a realidade atual das plataformas digitais que fornecem esses serviços de aproximação, intermediação e concretização de comércio de produtos fornecidos por estabelecimentos comerciais, pois possuem plataformas vulneráveis e inseguras considerando os mecanismos existentes, sobremaneira em comparação com outras plataformas digitais que prestam serviços semelhantes.

Melhor explicitando, o “golpe do delirevy” só é realizado com a utilização da plataforma digital, a qual seleciona/encontra o entregador para realizar a entrega do pedido ao consumidor, de modo que, após selecionado o entregador, possibilita que este, via chat da plataforma, troque mensagem com o consumidor, SEM NENHUM TIPO DE RESTRIÇÃO OU FISCALIZAÇÃO.

Inclusive, permitindo a solicitação e troca de contatos para tratativas fora da plataforma, o que acaba expondo o consumidor a qualquer tipo de fraude, sendo inconcebível qualquer alegação de culpa exclusiva da vítima que está de boa-fé, em situações que o fornecedor de serviços não toma as medidas necessárias para evitar tais práticas delituosas em sua plataforma.

Contudo, nesse contexto, vale destacar que diante de práticas delituosas, é comum plataformas digitais tomarem medidas de segurança acerca das cobranças, centralizando o pagamento dentro da própria plataforma para evitar cobranças indevidas realizadas pelos estabelecimentos comerciais e/ou pelos entregadores, entre outras medidas como comunicações e central de ajuda ao consumidor.

Portanto, numa eventual hipótese em que a plataforma já avisa que não será realizada cobrança do produto no momento da entrega, pois já foi realizada no espaço virtual e, ainda assim, o consumidor realiza novo pagamento, sob simples pedido do entregador no momento da entrega, estaríamos diante de uma possível excludente de ilicitude, caracterizada por culpa exclusiva da vítima, pois, não houve defeito na prestação de serviços da plataforma e esta tomou as medidas necessárias para evitar tais danos, ainda que praticados por parceiro autônomo, pois o próprio consumidor poderia ter evitado o dano seguindo as orientações do fornecedor sem muito esforço.

Aliás, este é o entendimento que o Tribunal de Justiça de São Paulo vêm adotando, conforme precedente exemplificativo abaixo:

“DANOS MATERIAIS – Negócio jurídico realizado através de plataforma digital – Descuido do autor, contrariando orientações do sítio eletrônico do apelado – Hipótese de culpa exclusiva – Ação julgada improcedente – Sentença mantida”

(TJSP – Acórdão Recurso Inominado  1003541-10.2018.8.26.0320, Relator(a): Des. Antonio César Hildebrand e Silva, data de julgamento: 23/09/2018, data de publicação: 01/10/2018, 1ª Turma Cível)

Entretanto, corroborando com o entendimento anteriormente exposto, na hipótese que o entregador selecionado para realizar a entrega utiliza a plataforma digital para entrar em contato com o consumidor via chat, simula algum evento que pode ocorrer no dia a dia, como o exemplo de um acidente de trânsito, solicita o contato particular do consumidor para que outro entregador possa realizar a comunicação e entrega do pedido, informando que nova taxa de entrega será cobrada (geralmente no valor de R$ 4,99) e, na cobrança, com a utilização de máquinas viciadas ou com o visor parcialmente danificado, realiza cobranças muito superiores ao valor informado (ex.: R$ 5.004,99, R$ 2.004,99) e causa enorme prejuízo ao consumidor, neste caso estaríamos diante de uma falha na prestação de serviços da plataforma digital e consequentemente haveria a sua responsabilização para reparar os danos sofridos pelo consumidor, nos termos do artigo 14, do CDC, abaixo transcrito:

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I – o modo de seu fornecimento;

II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III – a época em que foi fornecido.

Inclusive, este é o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, conforme se vê do precedente abaixo:

APELAÇÃO GOLPE DO DELIVERY DANO MATERIAL E MORAL CARACTERIZADO MANTUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO IMPOSTA NA R. SENTENÇA

– Houve evidente falha na prestação de serviço, na medida em que a apelada contratou o serviço de entrega da apelante, confiante que o serviço seria prestado de forma adequada, tendo sido vítima de golpe perpetrado pelo entregador vinculado à apelante, que no momento da entrega exigiu pagamento de taxa de entrega, o que após se tornou conhecido que, em verdade, quantia expressiva havia sido debitada da conta da recorrida. Prestadora de serviço que responde pelos atos praticados pelos entregadores independentemente de vínculo empregatício.

– Não merece guarida o recurso no que se refere à imputação da ocorrência do evento danoso à conduta da consumidora, ao argumento de que ela não teria agido com cautela, ignorando a mensagem a ela encaminhada acerca da forma de pagamento, já que aos autos não foi colacionada qualquer prova nesse sentido,para que fosse reconhecida, ao menos a culpa concorrente da vítima.- Resta evidente o dano moral suportado pela consumidora que teve frustrada a expectativa de realizar com comodidade e segurança compras por meio de aplicativo, em virtude do golpe por ela suportado (débito de valores alheios ao negócio jurídico celebrado em sua conta bancária), conduta essa que fora perpetrada pelo entregador a serviço da própria apelante.RECURSO IMPROVIDO.”

(TJSP. APL. 1053847-90.2020.8.26.0100. 30ª Câmara de Direito Privado. Relatora Des. Maria Lúcia Pizzotti. Julgado: 10/02/2021. Publicado: 18/02/2021)

A diferença entre os exemplos acima, é a existência da falha na prestação de serviços da plataforma digital, pela falta de segurança que o consumidor deveria esperar, tornando a prestação daquele serviço defeituosa, tendo em vista que o golpe só é possível ser concretizado por meio de comunicação via chat da plataforma, frisando-se SEM NENHUM TIPO DE RESTRIÇÃO OU FISCALIZAÇÃO.

A falha na prestação de serviços abordada aqui fica ainda mais evidente com o apontamento de recursos utilizados por outras plataformas que disponibilizam serviços de intermediação entre consumidor e estabelecimentos comerciais de outros ramos, as quais tomam de fato medidas de segurança para impossibilitarem práticas fraudulentas de seus parceiros.

Neste sentido, verifica-se, por exemplo, o seguinte mecanismo existente que já é adotado por outras plataformas, qual seja, após a realização do pedido junto a estabelecimento comercial cadastrado, também permitem o contato entre o estabelecimento cadastrado e o consumidor via chat, todavia, o sistema possui alto nível de segurança, de modo que, por meio de recursos automatizados, monitora o teor das respectivas mensagens trocadas entre estabelecimentos comerciais parceiros e seus consumidores, sendo vedado, sobremaneira, a solicitação e troca de contatos particulares, de modo que o único meio de comunicação para manter a segurança do consumidor, é o chat da plataforma que é monitorado, impedindo a tentativa de fraude.

E, mais, no supramencionado mecanismo que já é adotado em plataformas digitais de outros ramos do comércio, caso haja alguma tentativa de troca de contato, a própria plataforma bloqueia tais informações, o que já basta para afastar diversas formas de fraudes contra o consumidor e contra a própria plataforma.

Deste modo, resta evidente que as plataformas que não tomam as devidas medidas de segurança para evitar a prática de golpes em seus ambientes virtuais e, consequentemente, não fornecem a segurança que o consumidor deveria esperar, devem ser responsabilizadas pelos danos causados ao consumidor de forma objetiva, ou seja, sem a análise de culpa, nos termos do artigo 14, do Código de Defesa do Consumidor.

Em conclusão, após o amplamente exposto, constata-se que de fato é possível ver reparados danos sofridos em razão do “golpe do delivery”, contudo, diante de uma prévia análise do caso concreto e documentos comprobatórios.

De todo modo, o consumidor que eventualmente sofrer o referido golpe, deve registrar Boletim de Ocorrência tão logo tenha conhecimento da fraude, relatando todo o ocorrido de forma detalhada, bem como realizar reclamação formal na plataforma digital e nos órgãos de proteção ao consumidor como Procon, Consumidor.gov, Reclame Aqui, entre outros.

Caso não seja reparado o dano suportado pelo consumidor, é recomendável que a vítima procure um advogado especialista para que analise o caso e, se cabível, seja ajuizada ação indenizatória para reparação dos danos sofridos.

Obs. Em conformidade com a regra contida no artigo 27, do Código de Defesa do Consumidor, o prazo para extinção do direito de pleitear a reparação de danos nesta hipótese é de 5 (cinco) anos, a contar do conhecimento do dano e de sua autoria.

Referências:

Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 – Código do Consumidor – acessado pelo site: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm

TJSP. APL. 1053847-90.2020.8.26.0100. 30ª Câmara de Direito Privado. Relatora Des. Maria Lúcia Pizzotti. Julgado: 10/02/2021. Publicado: 18/02/2021

TJSP – Acórdão Recurso Inominado  1003541-10.2018.8.26.0320, Relator(a): Des. Antonio César Hildebrand e Silva, data de julgamento: 23/09/2018, data de publicação: 01/10/2018, 1ª Turma Cível

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